Quando menos pode ser mais
- Flavio Ferrari
- 28 de abr. de 2020
- 3 min de leitura
Quando me mudei para um apartamento ao lado de uma grande avenida de São Paulo, passei a observar o constante e intenso fluxo de veículos, nos dois sentidos, que começava logo cedo e se reduzia, apenas, na alta madrugada. Uma estimativa que encontrei indica que mais de 230 mil veículos trafegam nessa via diariamente.
Me dei conta do absurdo da situação. Todos os dias, mais de 100 mil carros indo e voltando, quando não engarrafados nos horários de pico.
Obviamente, estava ciente de que o paulistano gasta, em média, de duas a três horas por dia no trânsito. Isso equivale a aproximadamente 40 dias por ano, em tempo corrido.
Estava ciente, mas não consciente. Observar aquela massa de carros no conforto da minha varanda despertou-me. Passei a observar com mais atenção o uso que fazemos do nosso tempo.

Considerando os adultos que vivem em razoáveis condições socioeconômicas, em números arredondados para um dia de semana, temos 8 horas de trabalho, 8 horas de sono, 2,5 horas no trânsito, 2 horas em redes sociais, 2 horas dedicadas às refeições e outras 2 horas para atividades domésticas. Quem tem filhos e animais de estimação costuma roubar um pouco de tempo dessas tarefas para dar alguma atenção a esses entes queridos. Quem pratica atividades físicas frequentes também precisa fazer esse exercício de administração do tempo. Nos finais de semana, quem não trabalha “ganha” 10 horas que costumam ser aproveitadas para colocar as pendências em dia, prolongar o sono e as refeições, dar um pouco mais de atenção para família e amigos, frequentar um espaço religioso, fazer compras e, se sobrar tempo, dar um pulo no shopping ou praticar sua atividade atlética de final de semana. E é cada vez mais importante encontrar tempo para se atualizar, fazer cursos e estudar coisas novas para manter a empregabilidade ou conseguir uma promoção.
Cuidar de si mesmo é um luxo, e costuma ser representado por compras, pequenas indulgências ou happy hours, além da promessa de que, um dia, a vida será mais bem aproveitada, com viagens e outras atividades interessantes. Quando tivermos tempo e dinheiro para isso.
Em resumo, ocupamos 100% do nosso tempo, em ritmo acelerado, cumprindo rituais, tentando corresponder às expectativas, consumindo os recursos do planeta e postergando dias melhores.
Eis que, subitamente, o mundo desacelera. Boa parte da população fica em casa a maior parte do tempo, o trabalho diminui, o trânsito desaparece e todo mundo reclama. Nossa liberdade de ir e vir foi tolhida. Não podemos fazer as coisas que gostaríamos de fazer, e trinta dias nessa situação já foram suficientes para nos desestabilizar emocionalmente.
"Boa parte do que estou deixando de fazer não me parece importante."
Eu, aflito, ansioso, aborrecido, me perguntei o que, de relevante, estou impedido de fazer pela restrição da mobilidade e o distanciamento social? Fácil responder: viajar, encontrar amigos e praticar o contato físico. A segunda pergunta foi quantas vezes eu teria viajado, encontrado amigos e praticado o contato físico nesses 30 dias? Fácil também: teria ido uma ou duas vezes para a praia nos finais de semana, e encontrado e abraçado amigos umas 4 vezes. Não me pareceu uma perda significativa, quando quantificada. As demais coisas que estou deixando de fazer ou de consumir não me parecem importantes.
E o que ganhamos com o confinamento? No mínimo, ganhamos algumas horas de vida, que representam oportunidades diárias para fazer coisas que, antes, não seriam possíveis porque não tínhamos tempo. E, pelo que tenho ouvido das pessoas, esse tempo está sendo consumido pela angústia e a ansiedade de voltarmos ao “normal”.
Mas o momento nos dá a chance de reavaliar a forma pela qual vivemos. Talvez possamos viver mais com menos.
Sei que estou simplificando demais a questão. A sombra da morte paira sobre nossas cabeças, a questão financeira é uma ameaça concreta à manutenção de nosso estilo de vida, preocupamo-nos com pessoas queridas, o distanciamento momentâneo da família nos entristece, o estresse do confinamento nos abala e outras questões individuais significativas acontecem, caso a caso. Também não estou falando das pessoas que moram em condições deploráveis, as que têm dificuldades econômicas que já afetam sua sobrevivência ou as que se mantém trabalhando em serviços essenciais que as obrigam a enfrentar o perigo de contaminação diariamente.
Mas o fato é que o fluxo de carros na avenida ao lado de casa reduziu-se sensivelmente. Boa parte das pessoas que se deslocavam para o trabalho diariamente estão trabalhando em casa. Se for possível continuar trabalhando dessa forma, após o final da pandemia, ganharão o equivalente a 40 dias por ano de tempo para fazerem o que desejarem.
No momento, essas pessoas podem dedicar uma parte desse tempo para reavaliar suas prioridades, seus padrões de consumo, seus desejos e necessidades, seus sonhos e propósitos.
Acredito que poderão descobrir que precisam de menos para ter mais.
E esse pensamento, contagioso, pode transformar o mundo.
Se você for uma delas, aproveite.
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